Rogério Ceni voa amparado pelos companheiros tricampeões mundiais de 2005 (Foto: Marcos Ribolli)
Um adeus, um resgate. Uma prova cabal de que Rogério Ceni é um super-herói capaz de, em seu ato final de celebração, reunir a população para distribuir seus superpoderes. Nas entrelinhas de seu discurso, ao fincar pés, mãos e coração na eternidade, ficou a mensagem: vocês são grandes o suficiente para sobreviverem sem mim.
Por mais de 20 anos, o M1TO vestiu sua capa, afiou garras e lançou teias para defender seu povo. Seus companheiros, sua torcida. Como todo super-herói que se preze, alimentou-se do orgulho do rótulo de salvador, e olhou torto para quem quisesse lhe tomar o posto: “Eu estou aqui!”. Para treinar, jogar, motivar, bater pênaltis e protegê-los de quaisquer vilanias.
E agora? Na noite em que jogou a capa no fundo do armário, recolheu as garras e guardou o Batmóvel na garagem, no dia em que voltou a ser apenas Bruce Wayne ou Clark Kent, Rogério Ceni tratou de mostrar ao São Paulo e aos são-paulinos que eles são capazes de se defender. Tratou de resgatar o orgulho adormecido dentro de cada cidadão que canta ser tricolor, ter Libertadores, não alugar estádio, ser hexa brasileiro e nunca ter sido rebaixado.
O super-herói convocou sua liga da justiça a uma reunião no QG do Morumbi. Lembrou aos aflitos torcedores, desprotegidos e desesperados com a ideia de olharem para o gol e não mais encontrarem sua altivez, sua coragem e seus sintomas cada vez mais evidentes da idade, que o São Paulo é capaz de caminhar adiante se retomar valores de sua própria história.
Ceni coloca faixa de capitão no braço de Lugano ao deixar o gol e passar a jogar no meio-campo (Foto: Marcos Ribolli)
Da segurança de Zetti à maestria de Raí; da idolatria por Lugano à admiração por Mineiro; do drible de Amoroso à dança de Aloísio; da velocidade de Cafu à reverência por Toninho Cerezo; da elegância de Paulo Autuori à energia de Muricy Ramalho; da lembrança a Telê Santana à gratidão por Danilo; Rogério Ceni levou sua nação a uma viagem catártica em suas próprias lembranças. Permitiu que outro goleiro fizesse gol, colocou sua faixa de capitão no braço de outro ídolo. O super-herói centralizador virou altruísta para tranquilizar a sociedade.
Marcado pela coragem de bater um pênalti aos 21 anos contra o principal rival numa semifinal de torneio internacional, de treinar, errar, insistir e acertar cobranças de falta desafiando um tabu que de tão surrado por ele tornou-se patético, pela pré-disposição em transgredir os limites da imaginação, Rogério Ceni jamais se conformou com a mediocridade.
Inconformado. Com derrotas, críticas, máquinas de cortar cabelo, atitudes e falta de atitudes, palavras, gestos, dores, mas, sobretudo, com quem abdicou de lutar. Ceni nunca se importou em saltar de prédio a prédio ou sobrevoar a cidade para salvar as pessoas do perigo, desde que elas quisessem ser salvas. Generoso, preocupado, amigo, mas também vaidoso e chato no cumprimento de suas missões, e do que entendeu ser missão dos companheiros, viu seus superpoderes o transformarem em centro do mundo, literalmente em 2005, contra os vilões ingleses de vermelho, mas também de seu mundo particular durante muitos e muitos anos.
No intervalo, goleiro se juntou à banda de rock "Ira" e cantou para seus torcedores no Morumbi (Foto: Marcos Ribolli)
Lidou com isso. Na maioria das vezes bem, em outras mal. O mais fascinante de ser um super-herói é justamente o fato de seus superpoderes serem fruto do esforço e da vida. Ele não levou uma picada letal, não nasceu com mutações genéticas nem foi vítima de experiências laboratoriais. Formou-se da doçura rígida da mãe, da postura decidida do pai e de sua própria doação ao treinar, treinar e treinar. Desde garoto, quando lançava teias a esmo para testar do que era capaz, até os 40 e tantos, quando já poupava suas asas para os voos mais necessários.
Rogério Ceni é um super-herói humano. Que erra e tem fraquezas, e que como aqueles dos quadrinhos, tenta escondê-las para que os outros se sintam seguros. Tão humano que foi superado por um único limite: o da dor. O M1TO não aguentava mais, mas agora pode se despir da fantasia e da obrigação de salvar a todos. Relaxe os ombros e sorria, Rogério, como fez no extasiado Morumbi ao sofrer um gol por debaixo das pernas. Quer maior sinal de paz de espírito?
O maior jogador da história do São Paulo, um dos maiores do futebol mundial, foi perfeito em sua noite de gala, apesar de um erro na última palavra. Cinzas? Você não morrerá nunca, Rogério.
Fim. Fim? Quem se arrisca a decretar o fim de um super-herói? Sempre há uma continuação...
Rogério Ceni dá mais um beijo no enorme escudo do São Paulo no gramado do Morumbi (Foto: Marcos Ribolli)
Fonte:Globo Esporte
Fonte:Globo Esporte